Uma população adoecida: os efeitos da PEC 287 para a saúde do trabalhador

Publicado em 22/12/2016

Segundo a médica Maria Maeno, proposta deve aumentar índice de doenças crônicas

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Caso seja aprovada, a proposta de reforma da previdência defendida pelo governo Temer terá consequências nefastas para a saúde dos trabalhadores. Menor proteção e maior precarização das relações de trabalho levarão as pessoas a pensar várias vezes antes de aceitar um afastamento, o que tende a aumentar a cronificação das doenças. Some-se a isso o aumento da dificuldade para conseguir tanto o auxílio-doença quanto a aposentadoria por invalidez e temos um cenário desastroso.

Essa é a análise de Maria Maeno, médica e pesquisadora da Fundacentro. Voz presente há anos nos debates sobre saúde do trabalhador, Maeno denuncia nesta entrevista o que considera o fim ao conceito de seguridade social que temos na Constituição Federal, contido na PEC 287.

Leia abaixo os principais trechos:

Bom senso e justiça 

Existem algumas profissões e atividades de trabalho que são reconhecidamente penosas – do ponto de vista de bom senso, mesmo para quem não conhece. Um coletor de lixo, por exemplo, é claro que tem um trabalho que exige muito dele: força, energia, capacidade aeróbica, além de ser exposto a diversos agentes nocivos. Trabalhadores da mineração nem se fala. Trabalham muito tempo em ambientes poluídos, com poeiras de vários tipos. Trabalhadores de marmoraria, que estão em contato com poeira e ruído o tempo todo. Na construção civil, também estão sujeitos a alto índice de acidentes. E ainda bombeiros, trabalhadores rurais – e aqui não falo do pequeno sitiante, mas daqueles que têm trabalhos extremamente precários, como cortador de cana, coletor de laranja.

Nitidamente, qualquer pessoa pode avaliar como é penoso esse tipo de trabalho e qual a dificuldade que essas pessoas vão ter para chegar ao teto da aposentadoria, trabalhando 49 anos nessas profissões. E temos que pensar que o coletor de lixo não tem outra saída, por isso trabalha nisso. Ele começa com 18 anos e vai ter que trabalhar até os 67, se tiver a sorte de permanecer numa empesa por todo esse tempo, já que normalmente são terceirizados. A administração pública troca de empresa fornecedora, tem interrupção do contrato e muitas vezes chega o desligamento.

Outro grupo, como professores e profissionais de saúde, enfrentam outros fatores menos visíveis. Professores são sujeitos a muita pressão, estresse. Na saúde, também existem metas para cumprir, agressões de usuários, pressão. Aqueles que moram na região Norte, por exemplo, muitas vezes precisam viajar dias para atender certas comunidades. Agora, a proposta do governo sepulta de vez a aposentadoria especial, para todos. Acabou aquela ideia, que é justa, de que pessoas que têm um trabalho que desgasta mais possam se aposentar um pouco antes.

Isso deve levar a um aumento do adoecimento precoce. Esperamos que as pessoas que vivem em situação ideal apresentem doenças próprias da idade, mas o que é próprio depende do trabalho que cada um desenvolve. No escritório é uma coisa, para o trabalhador rural é outra. Os casos de silicose [doença profissional causada pela inalação de pó de sílica durante anos, comum em profissões como mineiros do metal, cortadores de arenito e de granito, operários das fundições e oleiros], por exemplo. Temos muitos trabalhadores jovens que adoecem e que jamais se aposentarão por idade nem por contribuição.

Mudanças perigosas para o auxílio-doença

A aposentadoria por invalidez também fica mais difícil. Quando fica doente por incapacidade permanente, o trabalhador pode receber 100% do salário de contribuição, mas com uma condição: se a doença causada for exclusivamente por acidente de trabalho. Isso dificulta ainda mais a caracterização da doença relacionada ao trabalho, que já é subnotificada. A depressão, por exemplo, que em diversas ocasiões se relaciona com a perseguição no trabalho ou a pressão para cumprir metas. Se um trabalhador se afasta por depressão e vai ser aposentado por incapacidade permanente, só vai receber 100% se a doença for caracterizada como exclusivamente ocupacional. Isso praticamente acaba com a ideia de causa no trabalho. Isso é, eu talvez já tivesse algum problema ligado à depressão, mas era capaz de trabalhar. O trabalho foi a causa determinante para a incapacidade. Isso era uma coisa consagrada no Brasil, na Lei da Previdência Social (lei 8213/1991). Como a reforma vem por meio de uma PEC, essa lei cai por terra. Isso é uma tentativa antiga de certos setores.

Outra mudança perigosa é a concessão de auxílio-doença por incapacidade temporária, não pela doença. Muita gente critica isso na lei atual, dizendo que não é a doença que enseja o pagamento, é a incapacidade. E pensando só na semântica pode até ter razão. Mas a doença tem um código internacional (CID, Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), diabetes, depressão, cada uma tem o seu. A incapacidade não tem esse código definido. Então fica mais arbitrário ainda por parte de uma seguradora dizer o que é incapacidade ou não. Se tem diabetes e cardiopatia, a seguradora pode dizer que tem a doença, mas não está incapacitado, fica no abstrato. É uma pegadinha da PEC 287, que vai piorar a vida das pessoas para ter acesso ao auxílio-doença.

Precarização geral

Estamos caminhando para uma precarização enorme do trabalho. A terceirização está passando no Congresso, que vai facilitar demissões e flexibilizar direitos, o vínculo do trabalhador não será mais estável. Construir uma carreira é uma possibilidade praticamente nula. E não estou falando só de atividades ditas desqualificadas, mas também de professores que hoje já são contratados por universidades por projetos. Não haverá concurso público, com a restrição de orçamento da PEC 55, as pessoas serão contratadas por projetos e com tempo determinado. Quando tem contrato de três anos pra ficar, já está pensando onde vai se encaixar depois para continuar vivendo, porque a gente não vive de projeto. Vai ser muito difícil ser segurado da Previdência. É uma insegurança para os trabalhadores.

Prejuízo maior para as mulheres e trabalhadores rurais

Há um conceito básico na Constituição: tratar pessoas com oportunidades diferenciadas de forma diferenciada. As mulheres, historicamente, têm menos possibilidades. Todos os indicadores e pesquisas mostram isso: menos oportunidades na carreira, menor salário, ganham em torno de 70% dos homens, cargos menores.  A mulher tem a característica da maternidade e tem sem dúvida encargo muito maior, os números mostram que ela trabalha mais que o homem nos afazeres domésticos e com os filhos. Ela historicamente é penalizada e continua a ser, apesar de mudanças positivas, portanto, deveria ser tratada de forma diferenciada [em relação à aposentadoria], e isso a Constituição garante. Mas a PEC 287 acaba com isso. É uma coisa muito ruim para a mulher trabalhadora e o movimento feminino tem que estar atento para isso.

Situação parecida acontece com a população rural. Ela entrou há pouco tempo na previdência e me parece que a ideia é praticamente retirá-la dela e passar para a assistência social. Afinal, qual a porcentagem que tem registro em carteira para contribuir? Vai passar praticamente para a assistência e depender do LOAS [Lei Orgânica de Assistência Social], que passará a ser desvinculado do salário mínimo. As condições para conseguir o LOAS já são difíceis, e quem depende dele são as populações mais vulneráveis.

Trabalhadores adoecidos e sem segurança

Do ponto de vista da saúde, essa reforma da Previdência é muito nefasta. Vai penalizar trabalhadores de forma geral. Vai aumentar o adoecimento e diminuir a possibilidade da pessoa se afastar para tratamento. Quem tem emprego vai pensar várias vezes antes de se afastar, pois pode ser demitido e ter descontinuidade nas condições de aposentadoria. Os fatores que já identificamos hoje que contribuem para a cronicidade da doença devem piorar.

Hoje já vemos diminuição das aposentadorias por invalidez, porque elas são reversíveis. De tempos em tempos, a Previdência pode fazer revisão, chamar essa pessoa para que seja submetida a perícia para ver se ela ainda está incapacitada. O governo já editou a MP739/2016, que, entre outras coisas, previa o pagamento um bônus de 60 reais para os peritos que marcassem revisão de benefícios [não periciados há mais de dois anos]. No momento em que o governo fala que vai pagar para o perito agendar essas perícias, está dizendo que quer que as perícias sejam aceleradas para diminuir o número de aposentadorias por invalidez. Da mesma forma, no momento em que se colocam restrições, por vários motivos, de acesso a auxílio-doença, a aposentadoria por invalidez também será mais difícil. Há um PL tramitando que prevê condição de 26 meses de contribuição pra ter acesso ao auxílio-doença, isso também é uma restrição.

Fim da seguridade social

A proposta do governo põe fim ao conceito de seguridade social que temos na Constituição Federal. Haverá um aumento de adoecimento com certeza, e da cronificação das doenças, o que é pior. Muitas das doenças ocupacionais mais comuns são crônicas, como a silicose, asbestose, LER [Lesão por Esforço Repetitivo], depressão. Essas duas últimas são os mais importantes do ponto de vista estatístico, e são crônicas. Se aprovada a proposta, caminhamos para ter uma população adoecida, sem cobertura de fato da Previdência Social e um mercado de trabalho extremamente precarizado. Lembrando que o desemprego, que vem crescendo, também aumenta o número de pessoas adoecidas – casos de alcoolismo, por exemplo. É importante que isso fique claro para a população.

(Fonte Previdenciabrasil.info / Foto Sindicato dos Bancários de Campinas)